Ricardo tira de letra o seu fardo

Se lá fora esse tempinho chuvoso deixa o dia mais pesado (há quem goste), imagine o clima dentro da clínica de hemodiálise quando uma companheira parte dessa vida.

Estava um silêncio quando cheguei, quebrado apenas pelos aparelhos de TV ligados. Os mais próximos estavam impressionados.

A Ana, de 50 e poucos anos, do box ao lado, não resistiu a um infarto e morreu ontem, ao dar entrada no hospital.

Era uma pessoa animada nos dias de bingo, risonha e expunha seus grandes dentes ao sorrir.
Não cheguei a contar a história dela, mas estava na minha lista e seria uma das próximas conversas.

Não deu tempo.

Só sei que ela tinha diabetes.

Comentam que talvez ela pudesse ter sido salva se tivesse corrido para o médico assim que sentiu a dor no peito. Mas achou que não era nada grave. Nem levou em conta que um paciente de hemodiálise precisa de cuidados redobrados, pois a saúde é mais frágil.

Existem pessoas que ficam à mercê da própria sorte ou do próprio destino. É o caso de mais jovens como o Ricardo, de 33 anos, há 3 na terapia renal.

Ele era ensacador de açúcar em uma usina e já não trabalha mais. Conseguiu aposentaria por invalidez e só isso mudou na vida dele.

É um rapaz forte, bonito e, olhando assim, sem saber da história dele, não dá para imaginar que é um doente renal crônico. Tira de letra esse fardo.

Chega de van com outros pacientes vindos de uma cidade na região. Carrega apenas o boné e o celular, passa rapidamente pelo banheiro e logo está deitado na poltrona, entregue à música do fone de ouvido, seu único passatempo durante a hemodiálise.

Não tem o menor problema por causa dessa situação. “Estou tranquilo, de boa”.
Não sabe nem porque os rins não funcionam mais e só descobriu a falência renal porque a pressão começou a subir muito.

“Meus rins simplesmente pararam”. Só agora, depois de 3 anos, decidiu fazer os exames para entrar na fila do transplante.

Assim como outros pacientes mais jovens que conheci, Ricardo não tem pressa. Tem todo o tempo do mundo para ajudar a escrever o próprio futuro.

Não passa aperto!